O que um pé quebrado tem me ensinado?




Pedro Henrique, irmão querido. Sapetinga, Ilhéus/BA.  


No dia 07 de abril fraturei o pé no surf. Um deslize bobo na descida de uma onda no raso. Tinha ficado uns meses sem surfar após passar o final do ano com a família no ES, uma viagem para o Vale do Pati e o início de um processo espiritual que ressignificou minha forma de ver a vida.


Passado todo esse processo que durou uns 4 meses, era hora de voltar a surfar e aproveitar essa nova etapa da vida, certo? Nem tanto meus amigos, pois a única certeza que temos da vida é do momento presente, nem sempre as coisas saem conforme planejamos. Precisamos entender que os fluxos não dependem somente da nossa vontade.


Bem, se você leu o texto até aqui e está cheio de coisas para fazer neste momento, sugiro que volte depois. As linhas abaixo dizem respeito sobre a importância de caminharmos com paciência e sobre a importância darmos um “passo de cada vez” literalmente na vida.
Lição 1 - “Não menospreze o dever que a consciência te impõe”


Quando sofri a lesão no pé, achei que tivesse sido só uma coisa boba. Coloquei gelo, tomei um anti-inflamatório, coloquei uma bota e continuei com minhas atividades normalmente, mesmo sentindo muita dor. Afinal de contas, o tempo não para! Diariamente são muitas atividades e demandas que não podemos deixar para depois.


Tinha voltado de uma viagem ao Vale do Pati, uma experiência espiritual e física fantástica, mas que me ocasionou uma lesão no joelho no quarto dia da trilha. Tive que ficar um dia inteiro de repouso sem ir nos passeios. Isso me levou a um novo caminho de reflexão sobre a importância de ouvirmos e respeitarmos nosso corpo e mente.  Num diálogo com uma colega de jornada, ela me disse “às vezes nosso corpo nos dá o alerta e a gente ignora...nosso joelho é flexibilidade...o que você pode não estar flexibilizando na sua vida, já parou pra pensar?” Era como se estivesse ouvindo uma voz lá do meu interior me dizendo...“ela tem razão Fabi, reflita sobre isso”. Menos de 2 meses depois da lição, estava lá eu de novo ignorando os sinais do meu corpo - neste caso, o meu pé.  


Nossos aprendizados não são automáticos, demora tempo para que a gente aprenda e se aproprie do conhecimento e das experiências da vida, sejam quais forem. Seguir nosso fluxo no automático pode ser mais fácil, mas os riscos de repetirmos atitudes, erros e ignorarmos nossa essência e nossa intuição são enormes.


Lição 2 - “Cuide de quem corre ao seu lado e quem te quer bem, essa é a coisa mais pura”


Assim que fraturei o pé, ainda dentro do mar fui socorrida por um coletivo solidário na praia. Me carregaram no colo até a areia e surgiram pessoas de todos os lados para me ajudar de alguma forma. Até chegar em casa fui literalmente apoiada em cada passo e degrau. Mesmo ainda sem consciência, um novo capítulo na minha vida se iniciava:  aprender novamente a caminhar.

Estamos acostumados a andar sozinhos desde que aprendemos os primeiros passos na infância. No início até temos o apoio dos adultos, mas assim que nos estabilizamos em pé, nossa caminhada é individual. Cada um segue na sua trilha da vida, procurando seus próprios caminhos. Mesmo estando rodeados de pessoas, o nosso caminhar é sempre individual e solitário. Nestes momentos que necessitamos de ajuda é que percebemos o quanto somos privilegiados, queridos e amados. Por mais difícil que seja nosso caminhar, sempre tem alguém para nos estender a mão, para nos carregar, nos acolher, seja num simples abraço, numa carona até o trabalho, numa compra no mercado, numa ida ao médico, entre tantas outras tarefas aparentemente simples.


Só quem fica limitado fisicamente sabe da dificuldade no dia a dia das tarefas cotidianas: aprender a andar de muletas, de tomar banho e se vestir num pé só, de dar comida e cuidar da gata com uma mão segurando a muleta e a outra o pote de ração, do trabalho em se levantar para pegar um simples copo de água ou de colocar a comida para esquentar, de sentir vontade de ir na praia ver o mar e pensar no esforço que será esse deslocamento, entre tantas outras tarefas simples do dia a dia.  


Numa simples ida ao médico, você receber a notícia de que foi uma fratura e que terá que operar de imediato. Sentar na recepção da clínica, chorar sozinha e com vergonha de se submeter ao julgamento do público ali presente ao demonstrar o desespero com a notícia. Neste momento é inevitável termos o seguinte pensamento “poxa vida, porque isso tudo está acontecendo comigo?” ou “e agora, o que vou fazer aqui sozinha?”. Mas não meus amigos e minha amigas, como disse anteriormente, sempre tem alguém para nos estender a mão e nos dar a luz que precisamos.


Nesta nova caminhada encontrei uma equipe médica maravilhosa, um ortopedista que me operou ao som do reggae e me deixou super segura em relação a possibilidade de voltar a surfar, vários amigos/as que me ajudaram cada um ao seu modo seja presencialmente ou mesmo à distância me enviando boas energias. Contei ainda com a parceria dos meus alunos que me surpreenderam com trabalhos incríveis de final de quadrimestre e dos meus colegas da UFSB. Não poderia deixar de destacar a parceria da minha gata Pantera que está o tempo todo do meu lado, me oferecendo seu amor incondicional e de vez em quando suas mordidas e unhadas como prova de carinho.


Nestes momentos é que temos que valorizar e investir no cultivo das nossas relações, no respeito ao outro e no amor que oferecemos ao universo sem cobrança. É justamente nesses momentos difíceis que vida te retribui em solidariedade, cuidado, respeito e acolhimento das pessoas queridas que cruzam sempre nosso caminho.


Lição 3 - “resgate suas forças e se sinta bem, rompendo a sombra da própria loucura”


Passado o desespero e a insegurança inicial, comecei a refletir como as quedas podem nos trazer novas oportunidades: a chance de ter o irmão mais novo por perto. Moramos em estados diferentes, e nossa convivência depois que saí de casa muito jovem se limitava a alguns momentos nas férias com a família. Compartilhar com ele meu espaço, meu violão, meus segredos, minhas angústias, alegrias e expectativas tem sido uma das maiores experiências de vida.


Nossa família está longe de se encaixar num formato tradicional: pais divorciados; cada um tem sua casa, sua rotina e sua vida independente; sentar na mesma mesa todos juntos só mesmo na noite de natal. Nos amamos do nosso jeito, mas optamos pela nossa independência e liberdade.


Perdemos há 29 anos nosso irmão mais novo, o que de certo modo nos uniu ainda mais, tipo: agora somos só nós dois né brother? Mesmo passando muito tempo longe, sempre que a gente se encontra a cumplicidade, o amor, o humor e as tretas são atualizadas. Nesses dias de convivência é como se voltássemos a ser dois adolescentes nas brincadeiras, risadas, gastações, tretas, brigas, e na parceria reconectada após anos de distanciamento. Como fruto dessa parceria, a música tem sido nossa conexão mais forte. Tocando violão juntos, aprendemos novas músicas, debatemos sobre ritmos e tons musicais, e "brigamos" pelos motivos mais bobos como qualquer relação entre dois irmãos. Mesmo assim, nossa frequência e sintonia a cada dia torna-se mais forte e intensa.


Fraturar meu pé me trouxe de volta a convivência com meu irmão e a aproximação ainda mais forte com as pessoas que são e se tornaram importantes na minha vida, resgatando minha certeza de que “o que importa é se sentir bem, o que importa é fazer o bem, eu quero ver meu povo todo evoluir também”


Lição 4 -  “buscando um novo rumo que faça sentido nesse mundo louco”


Já se foram 50 dias desde a fratura. Tenho aprendido a verdadeira essência do termo “um passo de cada vez”. Como refleti no início do texto, o conhecimento é demorado e nossas transformações e evolução na vida é um processo lento e demanda muita paciência, ainda mais para quem está com o pé quebrado.


Meu médico disse numa consulta que o termo “paciente” é justamente para que tenhamos a compreensão de que as coisas realmente importantes em nossa vida demoram para se consolidar, é preciso paciência. Os versos da música de Lenine nos leva a refletir que “o mundo vai girando cada vez mais veloz, a gente espera do mundo e o mundo espera de nós um pouco mais de paciência”.


Quantas vezes paramos em nosso dia a dia para refletirmos e adquirirmos consciência de quais caminhos estamos trilhando e onde queremos chegar? Paramos para ouvir nossa mente e observarmos nossa máquina que é o nosso corpo no dia a dia em meio a tantas tarefas do cotidiano? Paramos pra pensar o quanto muitas vezes exigimos tanto da nossa máquina e chegamos ao limite do funcionamento dela sem dar a devida manutenção necessária? Temos reservado um momento só nosso durante a semana para descansar a mente e/ou simplesmente não fazer nada por alguns minutos? Temos nos permitido seguir nossos próprios padrões de vida, sem levarmos em conta o que é moda nas redes sociais, no que o amigo/a está fazendo, no corpo perfeito, no surf impecável, nas metas cumpridas?


Como disse anteriormente, o nosso caminhar é individual, e por isso devemos nos libertar de tantas exigências e padrões impostos pela nossa sociedade. Seguir nosso próprio fluxo e padrão de vida é libertador e ninguém chega neste estágio sem sofrimento e sem refletir muito sobre seus processos. Vocês devem estar se indagando “nossa, a Fabi  está vindo com aquele papo existencialista de auto-ajuda, de auto-conhecimento, de amor ao próximo, blá blá blá.


Pois bem meus amigos/as, se tu chegou até aqui na leitura do texto, agradeço imensamente sua atenção. Cada um é responsável pelos seus processos e pelo seu caminho. Mesmo que não concorde em nada do que escrevi, só te faço um pedido: seja você! Se tem uma coisa que aprendi até aqui com o pé quebrado é que “o que se leva dessa vida, é o que se vive, é o que se faz”. Gratidão a todos/as que têm compartilhado comigo essa caminhada, seja de perto ou de longe…<3


Seguimos juntos/as e misturados/as dando um passo de cada vez!


Músicas citadas: 1) Pontes indestrutíveis (Charlie Brown Jr.); 2) Paciência (Lenine)

Comentários

  1. Oi Prof!

    Não tinha me dado conta da gravidade dessa fratura, quando nós fora avisados não parecia tal gravidade. Agora percebo como foi séria a cirurgia e esse período de readaptação é bastante difícil. Fico feliz em saber que tem pessoas ao redor para ajudarem nesses momentos, também é muito bom ver como tens a capacidade de perceber a situação nos diversos ângulos e não ficar presa ao "Que situação péssima estou passando!". Isso é algo que só se aprende com a experiência. Quem sabe quanto tempo mais demoraria para ver seu irmão novamente? e como disse no texto o "fluxos não dependem somente da nossa vontade" e temos que aprender a lhe dar com uma coisa de cada vez, um passo depois do outro.

    Foi um ótimo trabalho final do nosso CC, foi ótimo poder está naquela realidade mais uma vez e dessa vez pode fazer algo que em algum momento possa ajudar aquela população de alguma forma no futuro. A apresentação do meu banner na feira foi ótima, o doutorando da UFSB que estava presente amou as propostas de intervenção tanto que mal deixou professor Gustvo falar, pois elas estavam bastante conectadas a realidade "com os pés completamente no chão" como ele definiu.

    Por fim, lições guardadas, e tenha uma ótima recuperação com bastante tranquilidade para que possa voltar para a universidade no tempo certo em que o corpo permitir. Até mais!

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  2. Professora, a senhora é massa demais! Me sinto muito grata em poder compartilhar algumas tardes com você na UFSB. Sua energia, alegria e empolgação, mesmo diante das adversidades, me transmitem só coisas boas. As músicas, as brincadeiras e as risadas são detalhes importantes no dia-a-dia, mas muitas vezes negligenciados. Você é uma docente preocupada com os verdadeiros valores da vida, não apenas com a mera parte acadêmica, e isso é inspirador. Muita paz, força, garra e fé nessa jornada, jájá você estará pegando umas ondas novamente e fazendo estripulia, valorizando mais ainda esses momentos "simples" mas essenciais. kkkk. "DIAS DE LUTA, DIAS DE GLÓRIA" . Um biggg abração e toda minha positividade! :)

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