Filme "O Poço": nenhuma mudança de consciência é espontânea




Cartaz do filme "O Poço"

Olá, se você assistiu ao filme “O Poço” me acompanhe nas gastações das linhas abaixo. Caso não tenha visto ainda, não se preocupe, para além de alguns breves spoiler's do filme, vamos falar sobre alguns temas necessários nos dias atuais em que vivemos: consciência individual, coletiva, desigualdade social, classes sociais, Estado, entre tantas outras categorias presentes em nossa sociedade.

Não precisamos ler Karl Marx para saber que nossa sociedade é dividida em classes sociais e gerenciada pelo Estado (que divide-se basicamente em infra-estrutura - relações econômicas e super-estrutura - poder político/dominação). Calma, o texto é sobre o filme e a vida, não uma aula sobre marxismo. 

O filme espanhol lançado em 2019 (disponível na Netflix), retrata uma face cruel da sociedade dividida em plataformas/andares sociais numa sistema prisional “fictício” em que os presos são armazenados e dispostos em celas verticais. A comida é servida na quantidade suficiente para todos/as. No entanto ao descer no elevador os presos dos andares de cima se fartam sem pensar nos presos dos andares de baixo, de modo que quanto mais baixa a plataforma, menos comida chega. A fome e a escassez de comida, de valores, de solidariedade e de empatia se torna presente e mais intensa na medida que o elevador (social) desce. Em muitos casos, quando se aproxima dos últimos andares, é possível enxergar mais perto o processo de selvageria, canibalismo, violências diversas e a luta pela sobrevivência.

Cada preso tem o direito de levar um objeto para a prisão. O protagonista do filme Goreng (Ivan Massagué) opta pelo livro Dom Quixote, enquanto seu primeiro parceiro de cela opta por uma faca afiada, a segunda parceira opta um cachorro salsichinha e o terceiro opta por uma corda. Cada objeto tem um significado e uma referência para eles. O que chama atenção é que a representação de cada objeto diferente tem uma associação com os hábitos de vida, traumas passados e expectativas que se confundem com a realidade exterior à prisão, mas principalmente com a realidade interior não da prisão física em si, mas da prisão da mente e de como estamos sujeitos à diferentes comportamentos de acordo com as nossas experiências de vida, seja no andar de cima ou no andar de baixo. Podemos ir de um extremo ao outro quando se trata da nossa subjetividade, consciência e luta pela sobrevivência.

Voltando ao tema da comida x desigualdade social, podemos pensar: se todos se contentassem em comer somente o necessário ninguém passaria fome, nem na prisão do filme e nem no mundo real. No entanto, seja na realidade ou na ficção, a sociedade não funciona desta forma, vemos diariamente como a concentração de renda e a desigualdade social é gigante. Para citar somente somente um exemplo, a quantidade de desperdício de comida no planeta terra é proporcional  ou muito superior à quantidade  de pessoas morrendo de fome todos os dias. Nem precisamos ir muito longe da nossa realidade não, certamente bem próximo a ti, deve ter uma comunidade neste momento passando por dificuldades e por sorte de algum gesto de solidariedade esteja recebendo uma cesta básica para sustento mínimo da família em meio à pandemia. Enquanto isso, imagine a quantidade de comida e "papel higiênico" estocados nas residências das classes sociais mais favorecidas.

Sobre solidariedade, o filme nos leva a uma reflexão ao tratar do tema, assim como a empatia e a preocupação com o andar de baixo com a seguinte pergunta: “solidariedade espontânea - o que precisa acontecer para ela surgir?”.

Vamos pensar nos dias atuais - O que leva as pessoas a naturalizar a quantidade de mortes no planeta em função da pandemia? Como podemos pensar numa solidariedade espontânea se estamos neste momento quase todos/as trancados em nossa “cela” observando os noticiários e vendo as mortes como se fossem somente estatísticas? Como lidar com pessoas do nosso convívio social naturalizando e seguindo os ideais negacionistas em relação aos fatos e a ciência? Como chamar a atenção da sociedade brasileira para o momento político e social que estamos vivenciando sem ter que se explicar se tu é de direita, de esquerda, de centro, de lado, Lula Livre, Pátria Amada Brasil, Cloroquina, Tubaína? 

Os termos empatia, solidariedade, afeto, diálogo, escuta, reflexão se tornaram uma disputa política na atualidade. Como assim? São valores que nunca deveriam estar num referencial de temas polêmicos, mas sim num processo coletivo de unidade de pensamento e ação. Ou com mais precisão, se tornando um hábito, como a atitude de tomar café, tomar banho, escovar os dentes. Devemos considerar a tomada de consciência como um processo permanente em nossas vidas. Vamos voltar aos personagens de Goreng e Baharat (Emilio Buale), que de uma forma idealista, num intuito de transformar o sistema prisional e de desigualdade, tentam em vão dialogar com os presos dos andares de baixo para que eles possam fazer jejum por 1 dia para os presos dos andares inferiores consigam receber uma porção de alimento.

Se para alcançarmos nossa conscientização individual e entender a “mensagem” já é difícil, imagine quando se trata de uma consciência coletiva?  Cada um de nós recebemos diariamente informações e ensinamentos sobre a nossa vida - são experiências, sentimentos, valores, aprendizados e conexões diversas. Cada “mensagem” que recebemos, seja individual ou coletiva deve, pelo menos, servir para nossa reflexão e reconhecimento de que vivemos numa sociedade. Se a mudança não começar a partir de cada um de nós, não adianta querer culpar e responsabilizar o outro. Vamos começar com cada um fazendo a sua parte?

O filme é muito interessante e relevante no sentido de despertar uma reflexão de uma forma bem desconfortável (fotografia em preto e branco, imagens violentas e incômodas) sobre os diversos valores e sentimentos da nossa sociedade e como cada um, a depender das experiências de vida e da escala social em que está inserido, pode agir de formas completamente diferentes ou não, distorcendo valores universais de amor, compaixão, empatia, solidariedade, afeto, diálogo, entre tantos outros. Em outros casos talvez lutando para reafirmá-los e defendê-los de forma idealista, numa caminhada na contra-mão do sistema. 

A união do símbolo (doce Panacota) com a esperança (criança) se consolida no filme como a "mensagem", para o andar superior (Estado). Essa parte aí tu vai ter que assistir até o final do filme para entender. Ao chegar no fundo do poço, a consciência de Goreng ganha novos significados sobre a possibilidade de mudar o sistema e fazer chegar a “mensagem” ao andar superior. Resta saber se todo o sacrifício terá sido válida. Afinal de contas,  o sistema é feito para se ajustar a qualquer nova situação, se ressignificar e se transformar para continuar tudo do jeito que está. Nenhuma mudança de fato se dará de forma espontânea e sem rupturas estruturais numa sociedade de dominação. 


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