Chico Science: o caranguejo que andou pro sul, saiu do mangue e virou gabiru...





As décadas de 80 e 90 foram para o cenário da música brasileira uma explosão de novos ritmos e experimentações. O Brasil iniciava seu processo de redemocratização e a juventude criava neste contexto novas formas de expressão, organizada em coletivos urbanos das grande cidades. Em Recife, um grupo de jovens inspirados no cenário do manguezal lança o manifesto “Caranguejos com Cérebro”, liderado pelo músico Fred 04, vocalista da Banda Mundo Livre S/A.

No manifesto, lançado em julho de 1992, o mangue é retratado de uma forma poética em três perspectivas:  1) conceito (biodiversidade); 2) cidade (ocupação urbana); cena (mistura cultural). Um dos trechos do manifesto afirma que “os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência…”. Nesse cenário de expansão da consciência (com ou sem química) foram surgindo grandes referências musicais pernambucanas com destaque para as bandas Mundo Livre S/A, Mombojó, Eddie, Otto, Siba, China, Lenine, Mestre Ambrosio e DJ Dolores, entre várias outras referências da cena pernambucana.

Em meio a esse turbilhão de ideias e consciências coletivas, destaca-se o jovem mangueboy - Chico Science. Com o objetivo de extrapolar as fronteiras do manguezal e levar o ritmo do manguebeat para todo o Brasil, a banda Chico Science & Nação Zumbi, conseguiu se organizar, se desorganizar e mexer com as mentes e consciências da cena musical com o lançamento do álbum “Da Lama ao Caos“ (1994), contribuindo de forma decisiva  para a ebulição de um novo ritmo e movimento que misturava rock alternativo, maracatu, coco, hip hop, funk e música eletrônica.

“Posso sair daqui para me organizar
Posso sair daqui para desorganizar
Da lama ao caos, do caos à lama
Um homem roubado nunca se engana…”
(Chico Science & Nação Zumbi)

Entre se organizar e se desorganizar, foram 03 anos intensos de carreira e dois álbuns lançados - Da Lama ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1996), antes da precoce partida do mangueboy no dia 02 de fevereiro de 1997, a caminho uma apresentação musical no carnaval de Olinda. Ontem, 13 de março de 2019, Chico Science faria 53 anos. Impossível ver as fotos em sua homenagem e não pensar: como teria sido a produção musical nesses últimos 22 anos de carreira? Como seria seu posicionamento perante ao momento político e social atual no Brasil? Como seria a cena musical atual com a evolução do movimento manguebeat pelo mundo afora? Quais as parcerias musicais possíveis em âmbito nacional e internacional para novas produções culturais? Respostas que nunca saberemos.

Mesmo reconhecendo a importância da continuidade do projeto da Nação Zumbi, sob a liderança de Jorge Du Peixe, há um sentimento de grande referência e admiração perante a figura singular que foi Chico Science. O crítico musical Jon Pareles, apresenta  Science no Jornal New York Times como o fundador do movimento de maior impacto na música brasileira desde a Tropicália - movimento liderado por Gilberto Gil e Caetano Veloso. Para Pareles “as letras combinam protesto político com imagens visionárias, e Chico Science as performou com exuberância, misturando movimentos de break-dance com a ciranda brasileira, usando um chapéu de palha de pescador tradicional e óculos escuros de um rocker”, (edição - 5 de fevereiro de 1997). *

Na matéria da EBC citada acima, escrita em 2017*, com o título “Chico Science: 20 anos sem principal expoente do Manguebeat”, me deparei com o relato da irmã de Chico Science, que se chama Goretti. Ela conta a experiência vivida com o irmão nos últimos meses de vida e faz a seguinte pergunta: Como seria Chico Science hoje? A pergunta veio após ela encontrar com o músico Siba, conterrâneo e contemporâneo de Chico, no aeroporto em Recife.

“Ele (Siba) tava com a barba branca e eu fiquei olhando pra ele e pensando, assim, como seria o rosto de Chico hoje? Aí fiquei tentando achar que cara ele teria. Talvez menos cabelo, a barba grisalha, um pouquinho barrigudo, apesar que ele corria sete quilômetros por dia. Ele era maravilhoso. Eu acho que uma vantagem de morrer cedo é que você fica com a idade que você tinha. Então vamos imaginá-lo um homem no auge da sua maturidade, com toda alegria e leveza que ele tinha aos 30, quando foi embora.”

Ao ler este trecho, me veio na mente a imagem do meu irmão mais velho que morreu há 29 anos, com 18 anos de idade. Ele tocava guitarra de uma forma surpreendente, tinha uma banda de rock e me apresentou na época várias bandas em que ele se inspirava e era fã: Pink Floyd, Rush, Metallica, Led Zeppelin, Guns N’Roses, entre outras. Na época não dava tanta importância assim para a música, mas hoje quando paro para ouvir essas bandas e diversos outros ritmos, meu pensamento voa e percebo o quanto essa breve convivência com meu irmão marcaram minha memória musical e minhas referências até hoje. Faço a mesma pergunta que a Goretti: como seria meu irmão hoje? quem sabe um grande guitarrista, com uma barba grisalha e com o cabelo grande e encaracolado. Imagino nós três (eu, ele e meu irmão mais novo) tocando juntos e comemorando hoje (14/03) seus 47 anos. Ele seria um pouco mais jovem do que Chico Science. Quem sabe o caminho dos dois iriam se cruzar em algum momento das suas trajetórias musicais? Quem sabe?

Para nós, só resta guardar as boas lembranças e seguir “andando por entre os becos, andando em coletivos” celebrando a vida, a memória daqueles que amamos e nos apoiando na música como ferramenta de solidariedade, coletividade, parceria, inspiração e imaginação expressa nos versos de Maracatu Atômico:

“Atrás do arranha-céu tem o céu, tem o céu
E depois tem outro céu, sem estrelas
Em cima do guarda-chuva tem a chuva, tem a chuva
Que tem gotas tão lindas que até dá vontade de
Comê-las…”




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sejamos água, rio ou mar e livres! :-)

Série "Chicão, Sincorá e Purificação: gastações de uma aventura no Vale do Capão”