O Rappa: velhos sonhos, novos nomes na avenida, eu represento o instinto coletivo...



Marcelo Falcão, ex-vocalista da banda O'Rappa

O ano de 2018 marcou o fim da banda O'Rappa, em meio a várias polêmicas e permeado por uma espécie de “ fogo cruzado”. Hoje pela manhã vi uma postagem divulgando o lançamento do álbum solo do Marcelo Falcão e pensei: o cara tá tocando a vida dele, isso aí! A música move, re-conecta e renova, sempre! Não nos cabe julgar os motivos do fim da banda. Só quem vive na estrada por mais de 20 anos fazendo shows, abdicando da sua vida pessoal, se expondo ao julgamento dos fãs e tendo que encarar a batalha do mercado musical, sabe o que se passa nas mentes e corações desses guerreiros.


O mercado musical está cada vez mais virtual, digital e mergulhado numa bolha de julgamentos dos comportamentos dos artistas nas redes sociais, na maioria das vezes ignorando suas histórias, trajetórias e desumanizando os artistas, que são seres humanos como qualquer um de nós, composto de qualidades e defeitos. No caso de Marcelo Falcão, somado a isso tudo, temos uma voz incomparável. Quando ele entra no palco e solta o grave 'mofaia', ninguém fica parado. O instinto coletivo predomina.


A banda surgiu na década de 90, num contexto político do Brasil marcado pelo processo de redemocratização, eleições diretas, impeachment do Collor. Era um Brasil cheio de conflitos, mas também cheio de esperança na retomada da nossa democracia e início da resistência ao neoliberalismo. Minha história com a banda inicia nesta época. Uma jovem iniciando sua militância política, cheia de sonhos, me incorporando nas lutas sociais e aos poucos adquirindo meu instinto coletivo.

Pra quem curtiu dezenas de shows do Rappa assim como eu, deve ter já presenciado a cena do DJ Negralha soltando a mixagem e o Falcão entrando no palco com sua voz potente soltando os primeiros versos de “moço, peço licença, eu sou novo aqui, não tenho trabalho, nem passe, eu sou novo aqui…”. Os shows duravam em média 2 a 3 horas numa espécie de catarse coletiva musical.


Tentei fazer um cálculo de quantas apresentações da banda estive presente, mas me perdi nas contas. Destaco um show da banda memorável em 2001, durante a Bienal da UNE no RJ, quando o Marcelo Yuka apareceu pela primeira vez em público depois do assalto em que levou 09 tiros. Yuka que morreu recentemente foi um dos caras mais importante da história da banda até hoje. Suas composições ficarão para sempre marcadas como uma forma de denúncia social representada por quem vivencia as comunidades do RJ e conhece a fundo essa realidade ao expor no versos da música “Fogo Cruzado” que “a favela não é mãe de toda dúvida letal, talvez seja de maneira mais direta e radical o sol que assola esses jardins suspensos da má distribuição…”

Mesmo considerando as diversas polêmicas que envolveram O'Rappa nestes últimos anos de carreira, é impossível não reconhecer a importância desta banda que entrelaçou suas músicas com as nossas histórias (individuais e coletivas) e do nosso país.

Selecionei abaixo algumas faixas de cada álbum da carreira desde o início. Não tenho nenhuma pretensão de fazer uma análise histórica. Trata-se de uma singela homenagem e reconhecimento do Rappa e sua importância na trajetória musical das bandas de resistência e denúncia das desigualdades sociais surgidas na década de 90.


O Rappa (1993)


O primeiro álbum já trazia uma denúncia social com “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Naquele momento - início dos anos 90, a letra já expressava o racismo e violência nas comunidades do RJ nos versos “escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista”.


Rappa Mundi (1996)


Com o Rappa Mundi vem a consagração da banda emplacando vários hits. “Tumulto” era o anúncio das lutas sociais e das resistências coletivas nas comunidades ao afirmar que “eu sempre penso duas vezes antes de entrar, mas tem certos momentos que atingem o inconsciente popular”.


Lado B, Lado A (1999)


Lado B, Lado A (1999) começa com “Tribunal de Rua”, refletindo a face cruel das abordagens policiais e extermínio da nossa juventude negra. Impossível não se emocionar ao ouvir o verso “de geração em geração, todos no bairro já conhecem essa lição, o cano do fuzil, refletiu o lado ruim do Brasil”. Em momentos de reflexão sobre a importância da defesa dos Direitos Humanos e denúncias contra as atrocidades cometidas nas comunidades, impossível não pensar na Marielle Franco e na dor diária dos que vivenciam a violência nas favelas.


Instinto Coletivo (2001)


Instinto Coletivo foi uma coletânea de vários hits, mas também lançou “Ninguém regula a América”. Foi uma denúncia à influência norte-americana em nosso continente. O ano de 2001 marcou a realização do primeiro Fórum Social Mundial e a luta pela soberania dos países e dos povos na América Latina. A luta pela terra e o papel do MST emerge com destaque em “satélites de cima, vigiando todos os atos de rebeldia, MST observado pela CIA”.


O Silêncio que Precede o Esporro (2003)


O Silêncio que Precede o Esporro traz “O Salto”, uma música que denuncia as angústias vividas nos anos 90 pela sociedade brasileira e seus impactos na vida dos trabalhadores cantados nos versos”aos jornais, eu deixo meu sangue como capital, e às famílias um punhal (à corte eu deixo um sinal)”. Era também o início de um novo momento político com a eleição de Lula e a retomada da nossa esperança com o futuro do Brasil.


Acústico MTV (2005)


O Acústico MTV trouxe “Rodo Cotidiano”. Novamente retrata a realidade dos trabalhadores e as dificuldades do dia a dia deste rodo cotidiano com o “espaço é curto, quase um curral, na mochila amassada, uma quentinha abafada”.


7 vezes (2008)


Com 7 Vezes, a banda retoma a carreira numa nova perspectiva, mas sem abandonar os temas sociais. Com “Fininho da Vida” novamente a realidade das comunidades se apresenta em “os verdadeiros heróis são os guerreiros da lida, por entre as trincheiras-barracos, passam num sopro da vida, subindo e descendo em silêncio...”


Nunca tem Fim (2013)


O álbum Nunca tem Fim já demonstra uma banda com outra vertente, mais suave em suas composições e também um pouco mais madura. Entendo como uma espécie de cansaço natural depois de anos de carreira. A música ”Auto-reverse” me parece uma trégua e um fôlego em reconhecer que “nós estamos na linha do tiro, caçando os dias em horas vazias, vizinhos do cão, mas sempre rindo e cantando, nunca em vão…”


Acústico Oficina Francisco Brennand (2016)


Em seu último álbum Acústico Oficina Francisco Brennand gravado em Recife, era como se Falcão, Xandão, Lauro Farias e Lobato, dissessem ao seus fãs com a música “Uma Vida Só” que valeu os anos de parceria, mas está na hora de cada um viver sua vida a só numa relax, numa tranquila e numa boa! “sou caixeiro, feliz viajante, eu tô seguro na pista, por um triz, tô inteiro na raça, fazendo o que eu sempre quis, fazendo o que eu sempre fiz…”


Em 2018, o ciclo da banda chega ao fim. O legado d’O Rappa construído ficará como herança para as gerações futuras e para a nossa geração que vivenciou seus hits com intensidade e alegria, compreendendo que “a vida é linda, dura, sofrida, carente em qualquer continente, mas boa de se viver em qualquer lugar…”

Êxito e sorte à carreira solo de Marcelo Falcão e dos seu antigos parceiros - Marcelo Lobato, Xandão, Lauro Farias. Estamos todos/as em constante re-construção, aprendendo com as experiências da vida, nos permitindo recomeçar e renascer com a música. Afinal de contas, viver é melhor do que sonhar, como cantado nos versos da nova música do Falcão lançada recentemente, em parceria com Lula Queiroga.

"Viver é um sonho mutante
Viver é respirar sem culpa
Viver é fazer parte da família
Viver é uma eterna vigília
Viver é manter o coração ereto
Viver é respeitar todas as leis do afeto
Viver é melhor que sonhar..."
(Marcelo Falcão)


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