LIVE: uma nova maneira de sobreVIVER à quarentena?







A palavra LIVE em português significa VIVER. Desde meados de março estamos diariamente na luta pela sobrevivência na pandemia que vem assolando o Brasil e o mundo. Já foram milhares de vidas perdidas em todo o planeta. Mas essa “gastação” da Fabi, não é sobre a pandemia, e sim um ponta pé inicial sobre o advento das lives. 

Confinados em nossas residências - num período denominado de quarentena, há cerca de 3 meses e com acesso à internet, vimos surgir um novo fenômeno no âmbito das conexões tecnológicas que mudou radicalmente a rotina de uma boa parte da população. Bem, estamos falando daquelas pessoas que possuem condições de ficar em casa e com uma boa conexão de internet. Mudanças da rotina no trabalho (home-office), na educação (home-school), e no entretenimento digital (lives, Netflix, Youtube, Facebook, etc).  

Em meio a tantas dúvidas desde o início da quarentena, as pessoas passaram a usar a internet com uma alta frequência à procura de informações, distrações e formas de combater o medo, o tédio e a incerteza sobre o futuro. Segundo dados do Youtube, as buscas por conteúdos “ao vivo” cresceram 4.900% no Brasil desde o início da quarentena (Revista Exame). Neste misto de sentimentos, as lives surgem como uma válvula de escape para nossas angústias. Se antes da pandemia o uso dos smartphones já ocupavam grande parte da atenção das pessoas, em meio à quarentena ele se transformou em um “novo órgão” dos seres humanos - uma extensão do polegar opositor (marca da nossa evolução como mamíferos). O polegar opositor permite aos seres humanos o movimento de pinça dos dedos o que, por sua vez, permite a manipulação dos objetos (celular) com mais precisão. 

As nossas redes sociais ou bolhas sociais ganharam ainda mais centralidade nesse novo cenário interativo. A primeira experiência em assistir uma live me trouxe uma sensação de alegria, ao ver meu artista favorito na intimidade da sua sala tocando durante 3 horas seguidas, errando as cifras, desafinando o tom e expondo sua total verdade sobre o amor à música. No final de março, data da minha primeira live, tinha “certeza” que seria no máximo 30/40 dias de confinamento. Mas com o passar dos dias e dos meses, as lives foram ganhando centralidade na vida das pessoas e, como o mercado não dorme, em poucos dias nos deparamos com as grandes produções especializadas, holofotes, iluminação, etc. Aliado a isso, surgem também as campanhas de doações e diversas possibilidades de ajuda financeira às entidades que trabalham com pessoas em situação de vulnerabilidade, e não podemos esquecer também de toda uma equipe ligada às grandes bandas e artistas da música que estão passando por grandes dificuldades neste momento. Longe de mim fazer qualquer tipo de julgamento, mas entendo ser necessário refletir sobre a seguinte questão: Como será o futuro do mercado musical? As lives vieram pra ficar? Como lidar com a impossibilidade de termos grandes aglomerações à curto, médio e quiçá longo prazo? Como manter a cadeia de profissionais ligados à música? Como sobreVIVER da música no próximo período?

O setor da música tem sido um dos mais afetados pela pandemia, visto que a grande forma de expor sua produção está justamente na perspectiva de aglomerar pessoas nos shows, espetáculos e diversas modalidades coletivas de trocas culturais. Neste cenário ainda temos os músicos do circuito independente e alternativo, que realiza sua caminhada sem patrocínios, sem renda fixa, sem cachês e com pouca visibilidade, tanto na grande mídia, como nas redes sociais. Aliás, as redes sociais, com destaque para o Instagram, se transformaram numa “batalha” de lives, com os artistas lutando em garantir audiência e likes. Nesse cenário, a luta é muito desigual para os artistas com pouca visibilidade no mercado musical mais comercial. 

Quero destacar a potência do público online nas apresentações dos artistas com mais visibilidade na mídia. Para citar alguns exemplos: a live de Jorge e Matheus alcançou 3 milhões de pessoas conectadas, a da Marília Mendonça alcançou 3,3 milhões. Para variar os estilo musical, destaco a live do rapper Emicida que durou 8 horas e 20 minutos com transmissão ao vivo, para um público de 760 mil pessoas, arrecadando cerca de 800 mil reais para o projeto “Mães da Favela” da Central Única das Favelas (CUFA). O Laboratório Fantasma, criado pelo Emicida e Fióti, lançou no dia 30 de maio o LAB Fantasma TV (Twitch TV), um canal permanente de conteúdo do rap com programação diária à partir do dia 15 de junho. No momento em que escrevo esta reflexão estou assistindo a estréia do rapper Criolo em seu canal de TV. Será esse tipo de plataforma uma nova forma de divulgação da música na ausência de shows e espetáculos no próximo período? Uma nova forma de compartilhar conteúdo musical? Quem sabe? 

Outro exemplo interessante é a live da cantora Teresa Cristina que se tornou um fenômeno no Instagram desde o início da quarentena. A live acontece diariamente à partir das 21 horas, sem hora para acabar, com TT (como é chamada pelos fãs) cantando diversos compositores da MPB, músicas autorais, pontos da Umbanda, e um conteúdo fantástico sobre a história da música brasileira. No último dia 06 de junho ela fez uma homenagem ao ator Antônio Pitanga e reuniu virtualmente mais de 8 mil pessoas, com a participação de diversos artistas - destaque para Chico Buarque e Caetano Veloso. Tudo isso, sem produção, sem patrocínio até semana passada, cantando à capela e interagindo com os #cristiners (como são chamados os frequentadores da live). Na véspera, ao cantar o álbum “Realce” de Gilberto Gil, ela foi surpreendida pelo próprio Gil ao final da live, foram 10 minutos de bate papo sobre a vida, música e esperança. Ao final ela disse “Gil, você é o Brasil que deu certo. Obrigada!”. Impossível não se emocionar e gargalhar com a TT toda noite. Ela é a pura verdade de uma artista que ama e VIVE a música de forma conectada e real.

Tenho assistido lives também de artistas locais aqui de Ilhéus/Itabuna. Mesmo não obtendo a audiência dos grandes nomes da música nacional, percebe-se uma conexão real e uma dedicação dessas cantoras e cantores incríveis aqui do Sul da Bahia. Preparam o repertório com o maior carinho, interagem com o público, conhece cada um pelo nome, e oferecem o que há de melhor de si, expresso no amor verdadeiro pela música. Minha máxima admiração e empatia por todos/as esses artistas que procuram se reinventar neste momento de pandemia. Gratidão Laís Marques, Ize Duque, Jonnie Walker, Eloah Monteiro, Nina Sol, PH do Acordeon, Pri Luparelli, Gabriela Maja, DJ Múcio, DJ Fábio Tihara, Cijay, entre tantos/as artistas locais que nos orgulham e potencializam a cena cultural do sul da Bahia.

Vale destacar que além da música, a rede também está repleta de debates virtuais, lives dos mais variados temas (yoga, teorias, culinária, teorias científicas, dicas de como se vestir na quarentena, entre milhares de outros assuntos). Nossas vidas se tornaram um grande reality show! Cada um nas suas ilhas e bolhas sociais tentando sobreVIVER, tendo a LIVE como válvula de escape em meio à tanta tristeza e notícias negativas no dia a dia. Um imagem simbólica, que provavelmente se tornará a imagem do século, foi a do Papa Francisco na Basílica de São Pedro na Itália, celebrando solitário a Missa de Corpus Christi. A possibilidade da internet e a simbologia dessa celebração é de uma reflexão profunda sobre como o público também se conecta com a fé e a espiritualidade em meio à pandemia. Uma praça vazia e com a missa transmitida para o mundo todo permitiu que a mensagem do Papa chegasse às milhares de residências espalhadas no mundo todo. 

Diante de tantas possibilidades de conexões virtuais é importante selecionarmos o conteúdo que vamos “consumir”. Cabe um alerta - a internet cada vez mais se torna um espelho dos nossos hábitos e das nossas formas de ver o mundo. Ver nem sempre significa enxergar num mundo cada vez mais virtual. Nessa caminhada de tornarmos nossos hábitos cada vez mais digitais, não podemos perder nossa conexão real com quem somos de fato, com o que realmente é importante na vida real. Vamos pensar sobre isso! 

Não sabemos até quando vai durar essa pandemia, nossos hábitos podem se alterar ou não conforme o despertar da consciência de cada um. O essencial, ao meu ver, é continuarmos nossa caminhada, seja na música, na arte ou na vida, valorizando o que realmente importa e nunca esquecer: seja qual for a conexão, que seja real, real, real!

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